Miriam Aguiar
Escritora e professora de enologia.

Após ter estado no Uruguai numa viagem interrompida pelo início da pandemia em março de 2020, retornei acompanhando e orientando um grupo de 12 associados da ABS Rio recentemente. Uma viagem de uma semana muito rica, num roteiro que reuniu visita a novas vinícolas bastante representativas do que se passa hoje na vitivinicultura uruguaia, isto é, os clássicos fundadores, grandes e pequenos produtores, as inovações e a diversidade dos terroirs de Canelones e Maldonado – isso tudo regado a muito vinho, boa comida e estadia em duas de suas principais cidades: Montevidéu e Punta del Este.

O Uruguai é um país muito pequeno para nossas proporções, o que nos dá a impressão de poder condensar em algumas palavras a sua identidade, algo praticamente impossível na realidade brasileira. Alguns elementos parecem estar presentes em todos os cantos do cenário: a proximidade das águas, o chimarrão, a parrilha, o vinho da Tannat e o doce relevo dos pampas.

Seu território se vê ao longe no terreno pouco acidentado dos caminhos de Canelones e que nos dá uma sensação de estabilidade, de estarmos em terras seguras.  Essa impressão retilínea fundante ficou em mim certamente pelo cruzamento com alguns relatos de que o estado garante a educação a todos os cidadãos, de que o salário mínimo é bem digno e de que muitas pessoas (não apenas os uruguaios) escolhem o país para se aposentar e ter uma vida mais tranquila.

Em relação aos vinhos, fomos agraciados por ótimas experiências. Desde que visitei o país pela primeira vez, a evolução é bem significativa, tendendo à diversificação. Os vinhos da Tannat são o emblema, mas estão cada vez mais acompanhados por vinhos de outras cepas e apresentando um perfil mais elegante.

O país se encontra dentro da latitude nobre da vitivinicultura, entre os paralelos 30o e 35o Sul, mas com a particularidade de ser rodeado por águas. A latitude favorece o bom amadurecimento das uvas e a proximidade das águas tem um efeito moderador, no sentido de prolongar o amadurecimento das uvas. Por outro lado, traz sempre riscos de doenças fúngicas para os vinhedos. Sendo assim, é necessário trabalhar com cepas resistentes à umidade e não é à toa que a Tannat foi escolhida, pois tem uma casca espessa e consegue sobreviver muito bem no país.

Além disso, os produtores estão muito cientes da necessidade de controlar o perfil muito produtivo da casta, que pode impactar negativamente a qualidade. A regra é privilegiar a qualidade, controlando o rendimento e aguardando a boa maturação dos taninos, resultando em Tannats menos adstringentes.

Em razão desse perfil climático, os produtores encontraram uma segunda casta que parece estar se tornando o vinho branco emblemático do país, feito da Albariño, uva nativa da região da Galícia, produzida tradicionalmente na região de Rías Baixas, na Espanha, e na região do Minho, em Portugal, com o nome de Alvarinho (esta já bem conhecida do consumidor brasileiro). A motivação veio justamente da semelhança ao clima mais úmido de Rías Baixas. Bebemos muitos Albariños e é interessante como ele se torna mais salino à medida que nos aproximamos do solo mais granítico do Departamento de Maldonado.

O nosso roteiro começou pelo entorno de Montevidéu e pelo Departamento de Canelones, região mais famosa de produção, a cerca de 30/50km da capital. No primeiro dia, visitamos a Bodega Bouza, um projeto focado em qualidade com vinhos já muito apreciados no Brasil e a Familia Deicas/Establecimiento Juanicó – provavelmente, o maior produtor uruguaio, que comercializa desde a linha popular Dom Pascual até o ícone Preludio, vinho de corte de uvas tintas.

Dia seguinte, fomos à Bodega Pizzorno, vinícola familiar que veio se afirmando ao longo do tempo com seu foco em vinhos de qualidade, dentre os quais está o vinho ícone Primo. Em seguida, parada nas Bodegas Carrau, uma das mais tradicionais do país (sua história familiar teve início em 1752), onde tivemos a gentil recepção da enóloga e dos proprietários Javier e Ignácio Carrau. O vinho ícone da uva tannat é o Amat e eu me surpreendi com a produção um vinho branco feito da uva Petit Manseng, do sudoeste francês.

Após dois dias na região de Canelones e Montevidéu, seguimos em direção a Punta del Leste, com visitas a duas vinícolas neste trajeto. A bodega Bracco Bosca, de estrutura menor, mais artesanal, mas que trabalha com algumas inovações, como o vinho seco da uva Moscatel e vinhos de ânfora da Syrah. A outra parada, já quase chegando em Punta foi no recente empreendimento Cerro del Toro, propriedade de investimento japonês no Uruguai, com vinhos bem interessantes e localizada numa altitude pouco comum, com bela vista.

Isso de certo modo é a tônica dos terrenos mais a leste do país – com áreas de relevo mais inclinado, favorecendo a drenagem e a insolação.  Ali começamos a notar as mudanças do solo argilo-calcário para porções mais arenosas e com a presença de rochas de granito erodidas, denominadas balastro. Isso é bem marcante na constituição geológica dos vinhedos da Bodega Garzon, visita seguinte que muito impressiona qualquer um pela grandiosidade de suas instalações. A vinícola já recebeu prêmios internacionais pela exuberância deste projeto, recebe muitos turistas e seus vinhos já ganharam muitos adeptos no Brasil.

As últimas visitas foram mais próximas de Punta del Este – a Bodega Oceânica, localizada no povoado José Ignácio, a princípio, um estabelecimento que produzia azeite e que nos últimos anos agregou a produção de vinhos num estilo mais moderno. A julgar pelo capricho do local, que mescla uma visão sustentável dos negócios do azeite e do vinho ao capricho paisagístico conceitual da propriedade rural, com esculturas que ornamentam a sua paisagem, a Bodega Oceânica é uma das boas promessas uruguaias.

O roteiro enoturístico foi encerrado com uma visita à Bodega Alto de la Ballena. Sem grandes ostentações estruturais, esta vinícola aposta as fichas na localização e perfil dos vinhedos, com mais altitude e proximidade do mar, em que figuram outras cepas, como Merlot, Syrah e Viognier. As duas últimas e a produção de um vinho de corte da Tannat com 10% da Viognier revelam uma conexão da vinícola com a produção do Vale do Rhône, na França, onde o clássico Côte Rotie pode associar a Syrah a leve porcentagem de Viognier.

Finalizamos a nossa viagem com uma sensação de muita completude. O vigor do enoturismo uruguaio cresce de forma significativa e, aos poucos, as vinícolas constroem pousadas, restaurantes e criam formatos diferenciados para receber os clientes, dentre eles, os brasileiros são cada vez mais frequentes.