Costuma-se dizer que vinho e queijo fazem uma dupla perfeita e que é difícil imaginar um sem o outro. Até concordo que uma recepção de queijos e vinhos é um encontro muito agradável, uma vez que permite fazer inúmeras combinações e experiências sensoriais, além de estimular a boa conversa. Mais ainda, a festa de queijos e vinhos tem um significado simbólico importante, pois celebra a vida, reunindo os alimentos mais antigos da Humanidade, obtidos de forma natural pelo esforço, pela dedicação e pelo amor do homem à terra: o queijo, o vinho e o pão. Mas, ao contrário da opinião geral, considero o casamento entre queijos e vinhos um dos aspectos mais complicados da arte da harmonização entre alimentos e bebidas.
O primeiro obstáculo é de natureza, digamos, temperamental: pretender que duas estrelas com luz própria e de tamanha personalidade dividam o mesmo palco harmoniosamente, sem que um “roube a cena” do outro, não é tarefa das mais fáceis – que o digam os diretores de Hollywood, obrigados a administrar a vaidade de seus astros. Quem é o protagonista? Quem aceita assumir o papel de coadjuvante?
O segundo problema é de ordem prática: queijos em geral são bastante salgados, o que dificulta a escolha do vinho. Isso é mais verdadeiro no caso dos tintos, pois os taninos – característica mais evidente desse tipo de vinho – quase sempre entram em conflito com o sal do queijo. É por isso que em geral o vinho branco protagoniza uma harmonização mais equilibrada com os queijos. Acontece que o brasileiro tem notória preferência por tintos, o que limita bastante a escolha.
Apesar das dificuldades, porém, há cerca de trinta anos organizo um evento chamado “Como Receber com Queijos e Vinhos”, comentando e exercitando as possibilidades de harmonização. Agora no começo de julho, fiz três degustações do gênero, duas na ABS (Flamengo e Barra) e uma no restaurante Bottega del Vino, aqui dividindo os comentários com o sommelier Dionísio Chaves, proprietário da casa. Para (tentar) lançar um pouco de luz sobre a matéria e ajudar nossos associados a escolher queijos e vinhos, comento a seguir os resultados.
1ª dupla: Queijo de cabra tipo Ste. Maure da Fazenda Genève com Niel Joubert Sauvignon Blanc 2015 (Paarl, África do Sul – importadora: Berkmann). Servido com fatias de pão francês e pera d’água. Se existe uma harmonização sobre a qual não tenho praticamente qualquer dúvida, é esta: todo queijo fresco de leite de cabra (Ste. Maure, Brique, Crottin de Chavignol, Pyramide, boursin) fica ótimo com um jovem Sauvignon Blanc, com seu característico frescor e seus típicos aromas cítricos, vegetais e de frutas tropicais tipo abacaxi e maracujá. Em outras ocasiões, na tentativa de variar, experimentei brancos de Viognier, Riesling, Torrontés, mas nenhum chegou perto do resultado de um Sauvignon. Aliás, na zona de produção do Crottin de Chavignol, no Vale do Loire, esse queijo é sempre degustado com o Sancerre, conhecido Sauvignon Blanc produzido na mesma área. Portanto, melhor não inventar nada e ficar com um branco desta variedade – seja francês, sul-africano, neo-zelandês, chileno ou brasileiro (já provei, entre outros, com o Valduga Raízes SB, com o Villa Francioni, com o Amayna e nunca me arrependi). Resultado: um casamento que vai chegar às Bodas de Prata, fácil. Nota: 9
2ª dupla: Queijos Minas Artesanal Canastra com Chardonnay Reserva Miolo 2015 (Campanha, Brasil) – este não é um Minas qualquer, é feito com leite cru, tipo meia cura (mínimo de 22 dias, segundo o produtor). Mais uma vez, escolhi um branco – mas com discreta passagem por madeira, para segurar o sabor pronunciado do queijo. E ainda, para arredondar a força do queijo, coloquei ao lado uma colherada de geléia de mirtilo (marca Queensberry), que funcionou muito bem. Não creio que um branco frutado demais e sem madeira daria conta do recado; e nem um tinto também, exceto talvez um ligeiríssimo Gamay. Foi servido com pão ciabata aquecido no forno e maçã gala. Resultado: o casamento pode ser duradouro, se ambos controlarem seu temperamento (queijo não muito maturado, vinho com pouca madeira). Nota: 7.
3ª dupla: Reblochon Serra das Antas com Morgon Côtes du Py 2013, Dominique Piron (Beaujolais, França – importadora: Decanter). É um queijo de massa prensada não cozida, bem cremoso, de sabor marcante lembrando umidade e com muita personalidade. Este Serra das Antas é um dos bons queijos brasileiros. A literatura internacional recomenda desde brancos tipo Pinot Gris d’Alsace e Gewürztraminer até tintos encorpados como Châteauneuf-du-Pape, Côte Rôtie e Pomerol, passando por tintos leves da Borgonha ou crus de Beaujolais – veja como o tema é controvertido! Fui nessa última opção, escolhendo um dos crus de Beaujolais mais reputados. No grupo, houve quem achasse o vinho simples, mas a harmonização muito boa. Confesso que nada me encantou e pretendo adotar uma nova abordagem, da próxima vez. Resultado: se ficarem quietinhos e não se exibirem muito em público, podem até ir tocando a vida. Mas o casamento não tem muito futuro. Nota 6.
4ª dupla: Prima Donna etiqueta vermelha com Primitivo del Salento Visconti della Rocca 2014 (Puglia, Itália – importadora: Berkmann) – este queijo holandês é uma versão do Gouda de longa maturação, com características de um Parmesão italiano. Existem duas versões no mercado brasileiro: o azul, com cura de 18 semanas; e o vermelho, com afinamento de 8 meses, chamado de maduro. O queijo de massa dura e sabor pronunciado precisava de um vinho com uma certa rusticidade, encontrada nessa variedade da Puglia. Acredito que um Valpolicella di Ripasso também se sairia bem. Resultado: uma união equilibrada, em que um respeita e admira o outro. Nota: 8.
5ª dupla: Serra da Estrela com Porto King’s Tawny, da Warre’s (importadora: Decanter). Duas unanimidades portuguesas, inimitáveis. Portugal tem vários queijos de leite de ovelha, entre eles o Azeitão (da Península de Setúbal) e o Serpa alentejano; mas, para mim, o queijo da Serra é imbatível, sem favor algum um dos grandes do mundo. Quanto ao vinho, o Tawny sem indicação de idade é perfeito, mas um LBV também faria ótima figura – a vantagem é que o primeiro é bem mais barato. Resultado: entendimento perfeito, em que os dois andam de mãos dadas, na maior harmonia. Nota: 10
6ª dupla: Gorgonzola Skandia com Porto King’s Tawny, da Warre’s. Queijos de massa azul – Gorgonzola, Stilton, Fourme d’Ambert, Bresse Bleu, Bleu d’Auverge (todos de leite de vaca) ou Roquefort (leite de ovelha) – encontram seus melhores parceiros em vinhos doces, sejam tintos (Banyuls, Maury, Porto) ou brancos (Sauternes ou aparentados, Passito di Pantelleria, Moscatel de Setúbal). Há alguns meses, no grupo de degustação do amigo Mauricio Szapiro, provei um pannetone de chocolate com um Pedro Ximénez Viejo (Jerez doce) da importadora Decanter, e foi um harmonização fantástica! Portanto, Gorgonzola com Porto, é bola na rede. Nota: 10.
7ª dupla: Brie Président com Gianni Doglia Barbera d’Asti (Piemonte, Itália). A ideia aqui era usar um vinho com boa acidez, para enfrentar o alto teor de gordura do queijo (cerca de 45g por 100g). Escolha segura (e quase óbvia) seria um Pinot Noir da Borgonha; mas, para fugir do padrão, Dionísio e eu resolvemos escalar um italiano para encarar o francês famoso: na minha opinião – e na do público presente, que aplaudiu a escolha – a ousadia valeu a pena. Resultado: os dois se completaram, cada um respeitando a personalidade do outro. Nota: 8.
8ª dupla: Taleggio com Château Tourtirac (Bordeaux, França). O encontro que muitos gostariam de ter acompanhado na Eurocopa aconteceu aqui. E mais uma vez, Itália e França provaram que, ao contrário do que se propaga, podem conviver harmoniosamente – à mesa, bem entendido… Não foi novidade, porque o Taleggio (nesse caso, veramente italiano) só respeita quem fala alto com ele – característica deste Bordeaux à base de Cabernet Sauvignon, que, embora elegante, não desmente seu DNA. Conclusão: de vez em quando, mesmo no casamento entre pessoas de fino trato, é preciso elevar um pouco a voz para botar ordem na casa. Nota: 8.
9ª dupla: Ravióli de cordeiro com fondue de Parmesão com Ca’ di Rajo Sangue del Diavolo (Veneto, Itália – importadora: Sol Italy). Confesso que nunca tinha ouvido falar nesse vinho; mas, pelo nome, só podia ser um tinto de chegada, o que confirmei ao consultar a ficha técnica: 90% das uvas ficam secando no pé até o final de outubro, enquanto os outros 10% são submetidos ao appassimento (ressecamento sobre esteiras palha). O produto final passou 24 meses em barrica + seis meses em garrafa. Lembra um ripasso ou um tinto da Puglia, com aromas de frutas secas e uma estrutura respeitável – portanto, boa companhia para um prato com Parmiggiano, queijo de presença marcante, que exige um vinho à altura. Outra coisa interessante é que esse tinto é feito com a Raboso, variedade que raras vezes aparece por aqui. Resultado: uma união entre pesos-pesados, capazes porém de protagonizar momentos de enlevo e ternura. Nota: 9.