Equipe ABS-Rio

 

Uma vertical é uma oportunidade de avaliar a evolução dos vários fatores que se envolvem na produção de um vinho. Do aprendizado sobre o solo, da incorporação de novos conhecimentos, e da adaptação aos humores da mãe natureza.

Um vinho como o Almaviva, já nascido de pai e mãe privilegiados com fortuna e beleza, não precisou se submeter de forma absoluta às imposições de mercado, às modas e falsos conflitos como maior acidez x frutas maduras, taninos, álcool. Antes mesmo de ser concebido, o vinho já veio com seu brasão de ícone definido. Nasceu para reinar. Daí em diante, homens se encarregaram de alcançar o objetivo.

Mapeado o solo, os enólogos correm a usar as ferramentas disponíveis e olhar para o céu em busca dos sinais. E as safras serão filhas das decisões, irrigar ou não, quando fazer, quando colher, que proporções usar.

É o que queremos degustar nessa vertical, descobrir o quanto o tempo, físico e meteorológico, deixou suas marcas no Almaviva.

Sentir, refletir, avaliar, anotar. É o papel dos privilegiados degustadores. Posso dizer que cumprimos galhardamente a “missão”..

E passo a relatar a experiência.

 

A motivação

Depois da experiência da vertical 10 anos de D. Melchor (http://absnoticias.sistema-abs.com.br/noticia/dez-anos-numa-noite-ou-como-avaliar-10-safras-de-um-vinho/), nosso Grupo 15 da ABS – Associação Brasileira de Someliers-Rio, organizou uma vertical provavelmente inédita no Brasil: conseguimos reunir 15 das 18 safras de ALMAVIVA (1999 a 2013) para uma prova nos dias 14 e 15 de fevereiro no Clube dos Caiçaras. E acrescentamos também a safra 2001 do EPU, segundo vinho da vinícola.

Para o sucesso de uma vertical dessa envergadura, fizemos um trabalho prévio de pesquisa dos dados de cada safra, tendo sido fundamental as informações do site da Almaviva, riquíssimo em detalhes, e de publicações especializadas, como a revista Adega e a coluna de Jorge Lucki no jornal Valor Econômico. Além, é claro, da logística do serviço dos vinhos, que foi assumida pelo próprio grupo. Um caderno foi distribuído previamente a todos com a descrição das condições de cada safra, além de um texto com o histórico da vinícola, uma parceria de sucesso entre a Concha y Toro e Rothschild lançada em 1996.

Com taças e decanters identificados, os vinhos foram servidos de três em três safras, para as avaliações: na primeira noite safras ímpares de 1999 a 2011 e o EPU 2001; na noite seguinte, as safras pares de 2000 a 2012, e a safra 2013. Como manda a experiência, as garrafas estavam de pé algumas horas antes do serviço, foram abertas cuidadosamente e colocadas nos decanters cerca de uma hora antes. Todas as rolhas saíram inteiras, e não se constatou defeito em nenhum dos vinhos.

 

Por que dizer que o Almaviva nasceu em berço de ouro?

O vinhedo está localizado em Puente Alto, zona privilegiada da região de Maipo, cuja excelência de seu terroir se deve à influência da Cordilheira dos Andes, convenientemente próxima, e da bem posicionada distância de quatro quilômetros do rio Maipo, fatores responsáveis pelo clima seco – média histórica de 350 mm de chuva por ano, concentradas no inverno – com calor moderado e noites frescas no verão, além de um solo pobre e pedregoso que proporciona boa drenagem. Essas condições permitem um lento e propício processo de maturação, em especial à cabernet sauvignon, ensejando vinhos naturalmente equilibrados, com níveis desejáveis de acidez, bons taninos e estrutura.

O primeiro vinho, da safra 1996, não nasceu do zero. No acordo que selou a criação da Almaviva, coube à Concha y Toro entrar com as vinhas – uma bela parcela de 40 hectares do que tinha de melhor na área (fazia parte do vinhedo do Don Melchor) – e aos Rothschild entrar com a construção da adega. Na ocasião, também ficou acertado que a direção técnica seria compartilhada, com um enólogo-chefe, em geral designado pelos franceses, e um conselho composto por representantes técnicos de cada parte.

A identidade do projeto também tem a ver com ambos os lados, ou, melhor dizendo, com as duas culturas: o nome, embora soe latino, pertence a um clássico da literatura francesa, o Conde Almaviva, herói da obra “Le Marriage de Fígaro”, de Beaumarchais, e transformada por Mozart em ópera famosa. O logotipo no rótulo está associado ao “kultrun”, tradicional tambor Mapuche, civilização indígena que habitava o Chile, e os traços estilizados são uma interpretação da visão que eles tinham da terra e do cosmos.

A Viña Almaviva tem hoje 60 hectares plantados, 75% com cabernet sauvignon, ficando o restante dividido entre carmenère e cabernet franc e ainda merlot e petit verdot, com menos de um hectare cada. Do total, 30 hectares correspondem a parreiras velhas não enxertadas, plantadas em 1978 – eram40 hectares dos quais dez hectares (em decadência) foram replantados com adoção de técnicas vitícolas mais adequadas e dentro de um critério de substituição visando melhorar o padrão genético. As parcelas mais novas datam de 2001 e 2003 (mais quatro hectares em 2008), todas com uma densidade maior de plantação, oito mil pés por hectare, mais próxima, portanto, do padrão bordalês, e equipadas com sistema de irrigação enterrado, que permite um controle mais preciso da quantidade de água que cada videira necessita. A rega é, aliás, um ponto que está merecendo atenção especial por parte de Michel Friou, que, apesar dos resultados positivos alcançados a partir de diversos experimentos e aferições, acredita que há um campo enorme a explorar. É, no fundo, um conjunto de detalhes em busca de patamares ainda superiores de qualidade.

Desde 2005, vêm sendo empreendidos estudos profundos no vinhedo inteiro, tendo sido identificadas microzonas que são colhidas e vinificadas separadamente, o que permite separar lotes mais homogêneos para, depois de um rigoroso processo de seleção, compor o “blend” final. Um manejo mais apurado das vinhas, também tem possibilitado extrair uvas melhores, inclusive de castas que até então não contribuíam positivamente, caso da Petit Verdot. Sua utilização, mesmo com 1% ou 2%, permitiu, segundo Friou, mesclas mais precisas e balanceadas.

O processo de decisão do lote definitivo se dá sempre no mês de agosto, chegando a durar quatro dias. Dele participam Friou, Philippe Dhalluin, diretor técnico do Château Mouton Rothschild, e Enrique Tirado, responsável por três dos cinco rótulos mais nobres da Concha y Toro, caso do Don Melchor, do Gravas del Maipo (um Syrah), e do Eolo (majoritariamente Malbec de vinhas velhas da Trivento, na Argentina).

Tendo partido de um vinhedo definido e contando com a experiência de Enrique Tirado no que se refere ao terroir, o projeto Almaviva, já começou em 1996 com uma linha definida, ainda que, evidentemente, tenha evoluído com o tempo. Perguntado a respeito, Friou foi bem claro:

“Encontramos diferenças que são devidas aos anos, ao clima, e faz parte do nosso conceito de não esconder essas variações. Buscamos sempre o melhor vinho possível, mas que seja fiel às suas origens. Mas nos damos conta que há variações que se devem ao conhecimento do terroir, algo que hoje em dia está mais avançado.

 

Avaliação das safras

Informações coletadas, vinhos nas taças, e fichas de avaliação prontas para serem preenchidas. De três em três vinhos, fomos coletando notas e opiniões e apreciando cada um. E compreendendo o que dizia o enólogo a respeito das condições de cada safra, da escolha do blend, tempo de barrica. Notas variadas porém convergindo, todas acima de 93.

Entendo que acima de todas as considerações técnicas está o dedo dos deuses do vinho. O que acontece depois do engarrafamento pertence aos poderes de Baco. E este fez com que as safras mais antigas chegassem a nós maduras e perfeitas, com aromas de evolução como uma moldura para tanta complexidade.

Os vinhos mais pontuados foram 2003, 2004, 2009 e 2010 (o ano do terremoto no Chile!), sendo este último declarado o melhor na vertical, com média 97. Perfeito.

Para encerrar, transcrevo as condições destas safras e sua composição, para registro histórico e compreensão do papel da mãe natureza.

Safra 2003: 73% CS, 24% Carmenere, 3% CF. 18 meses em barricas.   

“As chuvas foram fortes durante a temporada de inverno, particularmente entre os meses de Junho e Setembro. Temperaturas mais altas ao longo de uma primavera temperada permitiram um bom desenvolvimento do vinhedo.
O verão foi muito quente e quase sem chuvas, o que favoreceu o amadurecimento das uvas.”

Safra 2004: 72% CS, 28% Carmenere. 17 meses em barricas novas francesas.

“As condições secas e de calor desde novembro a abril, resultaram em uvas pequenas e concentradas. Duas pequenas chuvas no final de março e início de abril aceleraram o amadurecimento e limparam as folhas com as quais se reativou o processo de fotossíntese na videira. Isso permitiu um amadurecimento óptimo.
As uvas foram recolhidas em 15 dias, dentro de um período total de 25 dias, desde 20 de abril até 14 de maio.
O rendimento foi muito baixo, e deram taninos redondos e precisos sabores de fruta.”

Safra 2009: 73% CS, 22% Carmenere, 4% CF, 1% Merlot. 18 meses em barricas.

“A colheita de 2009 corresponde a um ano particularmente generoso, marcado por um nível normal de chuvas invernais, uma primavera favorável, um número de cachos maior do que o normal, um florescimento e um coalho perfeitos, um verão quente e seco, e finalmente uma grande qualidade de fruta madura, saudável e suculenta, de taninos notavelmente suaves.
Um trabalho importante de poda de uvas foi realizado nas plantas para reduzir o rendimento das videiras mais novas, enquanto as videiras antigas com mais de 30 anos produziram naturalmente muito poucas frutas (21 hl/ha).
2009 corresponde também a um ano precoce, de brotação à colheita, com um processo de amadurecimento mais rápido e antes do normal. A colheita começou com o Merlot no dia 26 de março e terminou com o Carménère no dia 20 de maio. O Cabernet Sauvignon de Puente Alto foi colhido entre os dias 15 de abril e 15 de maio, e o Carménère de Peumo, entre 11 e 16 de maio.”

Safra 2010: 61% CS, 29% Carmenere, 9% CF, 1% Petit Verdot. 17 meses em barricas.

O ano foi marcado por uma primavera fria, que originou características importantes no Cabernet Sauvignon, resultando finalmente numa colheita de baixos rendimentos, com cachos pequenos e poucas frutas por cacho.

A colheita se caracterizou também por um lento desenvolvimento vegetal, 10 a 15 dias depois do normal, e terminou com um processo de amadurecimento extraordinariamente tardio. Até o fim de abril, somente 9% das uvas estavam colhidas, comparados com um 40% do mesmo período no ano de 2009. A colheita se iniciou dez dias depois do habitual, em 5 de abril, com o Merlot, e finalizou dia 25 de maio com o último Carménère. As uvas de Cabernet Sauvignon foram colhidas entre os dias 26 de abril e 20 de maio.

Sem dúvida, 2010 foi marcado pelo grande terremoto que afetou toda a região Centro-Sul do Chile no dia 27 de fevereiro. A adega e os vinhedos não sofreram danos. No entanto, as vinícolas tiveram menos irrigação durante as duas primeiras semanas de março e o clima ficou mais fresco depois do terremoto.

Todas estas peculiares condições favoreceram uma extraordinária qualidade de uvas, uma fruta madura e doce, e por sua vez, com um grande nível de acidez, elegância e pureza.”